Sobre aquele aclamado advogado e jurista que não gosta de ser chamado de Doutor

Sobre aquele aclamado advogado e jurista que não gosta de ser chamado de Doutor

A poderosa lição de humildade de um dos maiores criminalistas do Brasil.

No país onde a desigualdade impera – afinal estamos no sétimo lugar entre os 20 países mais desiguais, estando à nossa frente, ou seja, em melhor classificação, Botsuana e Suazilândia, os dois localizados na África Austral! – ser bacharel já pode ser considerado um grande feito, podendo alguém que conquistou tal título ser considerado do chamado andar de cima da pirâmide social.

Caso a formação acadêmica tenha sido em direito e a bacharela ou bacharel estiverem inscritos na OAB, traz junto a honrosa designação de doutor o que para muita gente, sem qualquer noção de humildade, acaba subindo à cabeça, passando a se auto apresentar como doutora Fulana ou doutor Beltrano de Tal, imaginando que, assim, atraia prestígio e respeitabilidade, automaticamente, sem necessidade de qualquer esforço profissional que faça merecer, de fato, tal encômio.

Atitude típica de país subdesenvolvido e desigual como o nosso, além da auto nomeação prestigiosa, passou a ser costume, principalmente por parte das pessoas na escala inferior da pirâmide social, tratar a todos de um nível, digamos, médio ou superior, pelos desígnios de doutoras ou doutores, mesmo que a pessoa tenha passado ao largo de qualquer formação formal, numa demonstração de subserviência, somente explicável pelo nosso abominável passado escravocrata.

Lá pelos idos do início dos anos 70, época da ditadura civil-militar, em pleno governo do ditador Garrastazu Médici e do chamado “milagre econômico”, meu saudoso pai, que era um autodidata e não tinha curso superior, conseguiu comprar um Fusca 0 Km.

Pouco tempo depois, mudamos de uma modesta casa alugada, no bairro de Pinheiros em São Paulo, onde passei toda a minha infância, para um simples apartamento, também locado, no bairro do Paraíso, a uma quadra da Paulista, mas que representou uma significativa mudança do status social de nossa família.

Lembro-me de um domingo onde meu pai resolveu levar a família para almoçar na conhecida churrascaria Dinho’s, que ainda hoje paira no mesmo endereço, no início da então arborizada Alameda Santos.

Naquela época o restaurante tinha longas filas de espera por suas disputadas mesas e um funcionário, de posse de um potente microfone, com voz de locutor de rádio, anunciava os ansiosos glutões pelo nome ou sobrenome, sem esquecer do doutor, quase nunca doutora, pois naquela época era raro encontrar uma família cuja chefia fosse exercida por alguém do sexo feminino, informando que a tão esperada mesa estava liberada, para uma certa quantidade de lugares. Obviamente, quanto mais lugares eram reservados para uma determinada pessoa, maior o prestígio.

O felizardo, então, desfilava na presença dos demais presentes todo pomposo na expectativa de ver e ser visto, não apenas ele, mas toda a sua família e convidados e que quanto mais numerosos, maior a importância para o comensal e respectivos convivas.

Quando chegou a vez do meu pai, o zeloso locutor anunciou o senhor Newton de Oliveira, o que para mim, então um adolescente de 13 anos, representou um sofrido constrangimento, quase que uma humilhação ou perda de autoridade diante de toda aquela classe média que se supunha, como ainda se supõe, superior, que continua tão provinciana como sempre, mas imaginando-se culta e cosmopolita a viver numa melancólica metrópole proclamada, por esse mesmo público, como habitat dos melhores restaurantes do mundo, a demonstrar a sua falta de mínima noção do que seja comer bem.

Mas meu pai nunca se deu a tais garbos, principalmente, a mentir ou a se fazer passar por alguém que ele não era, ou a se portar com ar de superioridade para com os mais desfavorecidos, muito embora tivesse doutorado em luta pela sobrevivência.

Deixou uma valorosa lição, ele que perdeu o pai de forma prematura, com apenas um ano de idade e, criado só pela mãe, começou a trabalhar com apenas 8 anos!

Mas voltemos aos dias mais atuais, mais precisamente no ano de 2017. Estava eu, juntamente com outro colega e advogado, na sala da OAB da sede do Tribunal Regional Federal da Terceira Região, localizado num monumental edifício na Avenida Paulista, para participar de uma sessão de julgamento que ocorreria logo mais, a tirar cópias de um processo, quando ouço o prestativo funcionário da OAB disparar, em alto e bom som, que, naquela tarde, o famoso advogado criminalista – cujo nome ainda deixo em suspense, na esperança de prender a atenção do leitor até o final deste texto – faria sustentação oral e que, se pudessem, gostariam de assistir.

Fiquei particularmente impressionado pela forma de como a notícia da sustentação oral do jurista e causídico de escol se espalhou pelo imenso Tribunal, a ponto de os funcionários da sala da OAB, estarem cientes, assim como me fascinou a magnitude da relevância e popularidade alcançada pelo tribuno, do qual me orgulha o fato de termos estudado na mesma querida PUC de São Paulo e de termos nos formado na mesma turma que concluiu o curso, no longínquo ano de 1981.

Ao me dirigir à sala onde ocorreria o julgamento do caso que patrocinava, tive a alegria de encontrar o meu amigo famoso, cuja sustentação oral seria feita, para meu deleite, naquela mesma sessão.

Fazia algum tempo que não nos víamos e após a imensa satisfação em revê-lo, tomamos, cada qual, o seu respectivo assento, posto que a sessão estava prestes a iniciar.

Coincidentemente, acabei por tomar lugar logo atrás de meu estimado amigo, no aguardo do apregoamento dos trabalhos, quando, repentinamente, adentra à sala um jovem advogado ou talvez estagiário, e acomodando-se ao lado do notável criminalista, cuja palavra era ansiosamente por todos esperada, instante em que pude notar que o referido novato trabalhava com o brilhante causídico.

Sem querer, reparei que o jovem assistente, ao se dirigir ao seu experiente colega, chamou-o de doutor, momento no qual, imediatamente, foi prontamente corrigido por este, com as seguintes palavras: “Não me chame de doutor, me chame apenas de Toron!”

No mesmo átimo chamei a atenção para o advogado que me acompanhava, indagando se ele ouvira o que eu acabara de ouvir, repetindo o que o meu amigo Toron acabara de dizer ao seu jovem colaborador.

Meus espantados botões não puderam deixar de comentar a lição de humildade que o Toron dava para aquele não menos espantado e surpreendido jovem, que jamais poderia antever aquela orientação.

Afinal de contas, ainda vivemos em uma sociedade em que, ironicamente, aqueles que menos merecem a designação de doutora ou doutor, fazem questão de assim serem chamados, a fazer corar de vergonha Thêmis, a deusa grega da justiça, testemunha invisível dos arroubos arrogantes daqueles que se imaginam superiores por serem doutores ou doutoras ou, ainda pior, se utilizam dessa suposta superioridade para massacrar outros, o que tornava a recomendação do Toron a mais eloquente demonstração de humildade, ainda mais advinda de um profissional de seu quilate e magnitude.

Acompanho a carreira do Toron desde seu início e já não me surpreendia quando, em 1996, no lançamento da sua afamada obra “Crimes Hediondos – O Mito da Repressão Penal” – Revista dos Tribunais 1996 – uma imensa fila de admiradores aguardava seu autógrafo na Livraria Cultura do Conjunto Nacional.

Mais recentemente, em fevereiro de 2018, numa memorável noite de autógrafos de sua abalizada obra “Habeas Corpus – Controle do Devido Processo Legal: Questões Controvertidas e de Processamento do Writ”, Revista dos Tribunais 2017 – sequer consegui me aproximar para obter a tão festejada célebre assinatura, tal era a incontável quantidade do público presente, que incluía, inclusive, ex-presidentes da República e Ministros de Estado, só tendo a honra de vir a receber o autógrafo por ocasião de uma visita que, posteriormente, fiz ao seu sóbrio e elegante escritório.

Assim é, numa muito breve pincelada, o caráter de meu nobre amigo, na sua gloriosa trajetória pelo mundo do direito, ensinando a todos o que não se aprende nem no mais afamado curso de direito do mundo: o poder da humildade!

Na minha trajetória profissional ganhei e perdi muito. Materialmente falando, perdi tudo que conquistara, arduamente, por anos de trabalho: a primeira vez foi por conta do Plano Collor I ou Brasil Novo, em 1990, a segunda em 2005, por outra ilegal ação arbitrária do Estado, ambas me obrigando a recomeçar tudo do zero absoluto.

Mas, parafraseando uma das mais marcantes falas do heroico e idealista personagem Coronel Ponciano, do livro “O Coronel e o Lobisomem” de autoria do notável e inesquecível imortal, o acadêmico Geraldo França de Lima – Editora José Olympio, 1972 – livro que tive o prazer de ler ainda na minha adolescência, figura que, após ter perdido tudo que tinha, considerava-se afortunado por ter-lhe restado a posse de um único sabiá laranjeira, digo: “Quem tem, como eu tenho, um amigo como o Toron, nunca será um pobre de Jó. Será o maior ricão do mundo!”

Newton José de Oliveira Neves

Dezembro de 2021

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